quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Causa e efeito

Coluna de Sergio Faraco, publicada hoje no Segundo Caderno, de Zero Hora.

O advogado Tairone Rossi era afamado na fronteira-oeste como paladino das causas perdidas, e tanto no foro cível como no criminal sobreluziam seu saber jurídico, sua inteligência, sua astúcia.
Ao escritório, instalado nas peças da frente do palacete em que vivia com a esposa, Dona Veva, vinha a clientela em romaria: homens da cidade e homens do campo, trazendo no rosto a angústia e o temor de um prejuízo. Mulheres não vinham, maridos e noivos não deixavam. Dr. Tairone era tido por femeeiro, e senhora ou senhorita que cruzasse aquela porta haveria de cruzar também, na voz do zé, a porta do serralho. Na época, comentava-se o envolvimento que teria com uma ex-miss.
Isto era o que se dizia e até se pichava nas ruas da cidade, como aquele TAIRONE BICO DOCE que amanheceu na fachada do fórum, mas ninguém podia precisar até que ponto os mexericos configuravam uma legítima adaequatio intellectus et rei. Jamais alguém o vira acompanhado senão por Dona Veva e ele mesmo nada revelava, embora fosse um tipo loquaz. De uma loquacidade especial, sublinhe-se. Encarnava de tal modo a fácies forense que, mesmo num cavaco entre amigos ao balcão do café, nunca se sabia se sua palavra correspondia ao que pensava ou era um exercício de hermenêutica.
Uma só vez dr. Tairone dispensou a advocacia e a verdade formal para homenagear a sinceridade e a verdade material: foi quando adoeceu com gravidade, sendo desenganado pelos médicos. No leito de morte, concluiu que era chegada a hora de abrir o coração à santa e calada esposa. Confessou, pedindo perdão, que de fato andara adoçando o bico com a ambrosia da miss.
Dona Veva, comovida, perdoou-o.
Mas a Morte, ou porque se esqueceu, ou porque errou o CEP, não veio buscar dr. Tairone, e a despeito dos prognósticos médicos ele começou a melhorar e foi melhorando até que teve alta do hospital. A viúva putativa interpretou essa convalescença como um deboche e, mesmo sem conhecer os brocardos tão caros ao marido, aplicou ao caso aquele que ensina que, suprimida a causa, cessa o efeito. Ah, não morria? Cancelou o perdão e meteu no quase de cujus um processo de separação que, lá na fronteira, provocou um rodeio de desquites e escândalos.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Amigo da Cultura

A Prefeitura Municipal de Picada Café, no Rio Grande do Sul, agraciou o escritor Sergio Faraco com o título de Amigo da Cultura, levando em conta sua "contribuição para o engrandecimento da cultura no município".

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Essa tia Itália

Coluna de Sergio Faraco publicada hoje no Segundo Caderno, de Zero Hora
No início do mês compareci a uma solenidade no Instituto de Educação General Flores da Cunha, tradicional e modelar educandário porto-alegrense que em 2009 completará 140 anos de existência e é um orgulho para os gaúchos. Na ocasião, foram homenageadas três ex-professoras do estabelecimento, Mariana Mazzaferro, Maria Luíza Mascarenhas e Itália Faraco. As alocuções ao longo da cerimônia denotaram que tais mestras, além de prestarem relevantes serviços ao ensino, são também pessoas muito amadas por quem veio depois. Mais ou menos como recomenda o hino da Associação dos Ex-Alunos: “Juntos cantemos / o tempo que passou / não lamentemos / nada nos separou”.
Elas receberam diplomas alusivos, flores e o carinho de todos, num dia em que a chuva fina e os trinados da miuçalha pelos corredores davam à meia-tarde um encantamento nostálgico e tocante.
Uma dessas damas de têmpera e ternura é irmã de meu pai. Tia Itália, hoje com 92 anos, muito cedo já se devotava ao encargo de educadora, e pouco a pouco ia abdicando dos entretenimentos próprios das moças de sua idade. Era já uma missionária, capaz de qualquer renúncia em nome de seus postulados educacionais e do que eles representavam como vértice de seu altruísmo. Casou-se com a ciência, a forma que encontrou para socialmente praticá-lo.
No Instituto de Educação, enquanto a enalteciam, eu a contemplava de longe e a figurava nos encardidos anos da ditadura militar, quando eu recém chegara da Rússia e, preso na sede da Interpol, na Praça do Portão, vivia noites tão execráveis quanto as que tivera em Moscou, na ala dos “dementes” do Hospital do Kremlin.
Essa tia Itália...
Em 1965, não foi minha mãe ou meu pai, tampouco outro membro da família ou algum amigo que, altas horas de uma noite de inverno, atreveu-se a bater à porta da casa do Secretário de Segurança, na Rua Sarmento Leite, para vindicar, conquanto em vão, minha liberdade. Foi Tia Itália. Mais tarde, finalmente livre – e em que estado! –, foi ela quem me acolheu e me levou a buscar assistência adequada a circunstâncias emocionais que eu mesmo já não podia controlar.
Acho que, mais acima, expressei-me mal. E menos. O vértice de sua conduta como educadora sobrepaira ao altruísmo. Na ciência dela, fez-se a práxis do mais belo sentimento que pode arrebatar um coração feminino: o da maternidade.
Tia Itália.
Eis uma mulher.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Luiz Fernando Carvalho é a grife da Rede Globo. Em 2009, o diretor apresentará "Dançar tango em Porto Alegre"

Luiz Fernando Carvalho provou novamente, com Capitu, ser o diretor que dá credibilidade à Rede Globo. É ele o artista responsável pelas séries que ganham reconhecimento da mídia e dos formadores de opinião. Desde uma semana antes da estréia de Capitu, foram inúmeras as matérias e críticas em todos os veículos de comunicação do País.
A audiência é o que menos conta na avaliação de uma série de Carvalho e, mesmo assim, Capitu ficou com uma média de 15 pontos no Ibope, acima da concorrência, o que para o horário tardio da noite e para a televisão aberta é uma ótima marca. Beatriz Rezende, em crítica no jornal O Estado de S. Paulo de ontem, diz: “Capitu, microssérie que terminou sábado, na Rede Globo, é, sem dúvida, mais do que um marco em termos de transposição de um clássico da literatura brasileira para outro suporte, é uma excelente ocasião para pensarmos nas possibilidades hoje disponíveis para divulgação da literatura e da cultura, em geral, e, em particular, para a generosidade que se impõe na partilha necessária do prazer que a genialidade de um autor como Machado de Assis pode proporcionar. Neste momento em que os conservadores de plantão andam ocupados em demonizar a internet, culpando-a por todos os males possíveis, não só no afastamento de eventuais leitores do livro em papel, como de todas as outras práticas disciplinadas de aquisição da cultura formal, podemos aproveitar a trégua e repensar a importância que o mais forte instrumento de divulgação da informação no Brasil, a televisão, pode ter para apresentarmos a todos o fascínio de um texto como Dom Casmurro.” Ou, como disse o crítico de cinema Luiz Carlos Merten, no mesmo jornal: "Capitu não há de agradar aos machadianos mais acadêmicos. Poderá até ser discutida, conceitualmente, à luz de Machado, mas, como espetáculo audiovisual, Luiz Fernando Carvalho nunca foi mais belo".
A próxima série de Carvalho, dentro do seu Projeto Quadrante, será Dançar tango em Porto Alegre, adaptação do conto de Sergio Faraco, com previsão para ser exibida no final de 2009. Dançar tango em Porto Alegre faz parte da coletânea de mesmo nome, reconhecida pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Nacional de Ficção de 1999, e também pode ser lida em Contos Completos (L&PM, 2004).

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Dois encontros com Faraco na Oficina Charles Kiefer



O escritor Sergio Faraco participará de dois encontros na Oficina Literária Charles Kiefer e Editora Ltda., em seu novo espaço: Rua Itororó, 175, sala 206. Dia 18 de dezembro, quinta-feira, das 10hs às 12hs e das 14hs às 16hs. Ele falará sobre o seu trabalho, o processo de criação, as diferenças entre conto, novela e romance, entre outros aspectos da produção literária. Cada um dos 12 participantes receberá um livro de Faraco autografado. Os grupos já estão com as inscrições encerradas. (Foto ao lado: Armindo Trevisan e Charles Kiefer na sessão de autógrafos de Faraco na Feira do Livro de Porto Alegre de 2008).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Sergio Faraco numa conversa franca com idosos


O Grupo Revivendo a Vida é composto de 65 pessoas com idades variadas – dentro de um processo de envelhecimento – com graus de alfabetização igualmente variados e que, por muitas vezes, foram excluídas de oportunidades na sociedade. Este grupo participa de um projeto extensionista na UniRitter e foi para ele que o escritor Sergio Faraco fez uma de suas mais longas palestras, no dia 09 de dezembro. Durante toda uma tarde, Faraco conversou com este público atento e cheio de perguntas, que surpreendeu e emocionou o escritor, tamanha a compreensão das suas palavras e a espontaneidade do encontro.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Dançar tango em Porto Alegre é a série da Globo depois de Capitu

A série Capitu integra o Projeto Quadrante - criação do diretor Luiz Fernando Carvalho para a Rede Globo - e estréia nesta terça-feira, dia 09 de dezembro. A próxima adaptação será do conto Dançar tango em Porto Alegre, de Sergio Faraco. A história, que irá ao ar na telinha em 2009, faz parte da coletânea de mesmo nome, reconhecida pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Nacional de Ficção de 1999, e também pode ser lida em Contos Completos (L&PM, 2004).

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Anjo da Morte

Coluna de Sergio Faraco publicada hoje no Segundo Caderno, de Zero Hora

Naquela rua e quarteirões adjacentes o dentista Romildo Bello era o único morador com telefone, e então era comum que boas e más notícias de Porto Alegre viessem dar no Alegrete por seu aparelho, o 19. Com o tempo e por algum motivo misterioso, ou nem tanto se figurada a catadura do doutor - olhinhos de rato, nariz de gancho e boca pequena, como desprovida de lábios -, o noticiário alvissareiro passou a eleger outros caminhos, e o fone 19 tornou-se exclusivo dos aziagos desenlaces.
Naqueles anos morria-se a miúdo, sem muita lengalenga, e o dr. Bello se desincumbia dos avisos como de um segundo ofício. Fez-se conhecido e temido. Se apontava na esquina, tremiam as famílias da rua, e na medida em que ultrapassava as portas sucediam-se suspiros num cortejo de alívios. De repente parava, olhava para trás ainda a tempo de ver cabeças ansiosas se ocultando, e retesava-se. Hierático, levava o nó do dedo à fatídica porta. Três batidas, e os moradores, ah, eles já podiam ter certeza de que entre a parentalha havia um morto fresco. Bem, nem sempre alguém morrera. Às vezes o aviso era de doença. Mas o dentista acrescentava: “Um caso perdido”. E não errava nunca. Era como se sua intermediação agravasse o estado do doente, abreviando-lhe os dias na parte de cima da terra.
Bem ou mal, dr. Bello continuava atendendo no consultório, e só o abandonou após um incidente que a todos surpreendeu: o Anjo da Morte arrastava uma asa pelos prazeres da vida, e não resistindo à juventude e à louçania de uma paciente, atirou-lhe um beijo à formosa boca. A vítima pôs-se a gritar pelo nariz, e o dentista, grudado nela como uma ventosa, só desgrudou quando acudiu, em alvoroço, a freguesia do bolicho ao lado. Na mesma noite, o marido ofendido bateu à porta e lhe pespegou uma soberba tunda. Foi quanto bastou para a debandada das cáries.
Fechado o consultório, devotou-se aos avisos. Mas eram outros os tempos, já escasseavam as chamadas de Porto Alegre, já muitas famílias tinham telefone e já os moribundos, menos apressados, começavam a espernear. E o ofício do doutor, como o dos seleiros, correeiros, tamanqueiros e encadernadores, encetava o mergulho no abismo em cujo fundo, com a dentama escancarada, espreitava-o a voragem do progresso. Sem pacientes, mudo o fone 19 e sem vivalma que lhe nutrisse a fama ao passar desta para a pior, pôs-se a murchar, perdendo peso e estatura, e a andar sem rumo pelas ruas da cidade, do Hospital de Caridade ao Povo da Lata, da Ponte Seca ao Armazém da Portuguesa. Ainda vive em Alegrete. E quando passa no quiosque da praça, arrastando seu desengrenado arcabouço, o populacho grita: “Sai, urubu”. E ele acelera o passo, o pobre, curvado ao peso da ingratidão citadina e de tantas e tantas mortes anunciadas.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Encontro com alunos de Cíntia Moscovich

Ontem à noite, Faraco conversou com alunos das oficinas da escritora e sua amiga Cintia Moscovich por quase três horas. O encontro foi tão proveitoso quanto agradável para a "gurizada" da Cíntia, como ela, carinhosamente, se refere às turmas, e para Faraco. Participou também do encontro o escritor Luis Paulo Faccioli.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Antologia "Os melhores contos da América Latina"

O contista gaúcho Sergio Faraco é um dos poucos brasileiros contemporâneos escolhidos por Flávio Moreira da Costa para a antologia Os melhores contos da América Latina (edição da Agir). A seleção ainda inclui Leopoldo Lugones, Alfonso Reyes, Horacio Quiroga, Mario Benedetti, Murilo Rubião, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Roberto Bolaño e Dalton Trevisan, entre outros. Dividido em segmentos como "O Conto Antes do Conto", "O Conto Aparece e Amadurece" e "O Conto Resplandece e Continua", o livro traz uma pesquisa apurada, reunindo desde precursores, como o mexicano José Bernardo Couto (1802-1862), a nomes ainda em atividade, como a uruguaia radicada na Espanha Cristina Peri Rossi.
Moreira da Costa autografou em Porto Alegre, na 54ª Feira do Livro. A mídia nacional elogiou o trabalho do escritor residente no Rio de Janeiro – considerado pelo jornal Folha de São Paulo o “melhor antologista da língua portuguesa” – assim como, em Nova Iorque, Lucas Mendes recomendou o livro no programa Manhattan Connection, exibido pelo GNT.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Autógrafos

Coluna de Sergio Faraco publicada hoje no Segundo Caderno, de Zero Hora

Estou combinadíssimo com o editor: minha sessão de autógrafos na Feira do Livro foi a última. Mas olhem só: ao lhe comunicar minha decisão, fiquei sabendo que ele não tem tanta simpatia por sessões de autógrafos e só as organiza por considerar que é um desejo dos autores. Como? Ouvi bem? Eu, que sempre admiti autografar meus livros em dadas ocasiões por pensar que assim o desejava o editor?
Cáspite, como dizia o outro.
O sobredito Ivan Pinheiro Machado e eu nos vemos assiduamente há 21 anos, estamos na antevéspera das Bodas de Prata, e nesses anos todos temos discutido muitas coisas, menos esta. Um silêncio obsequioso? É isso? Então nota 3 para os dois. Não aprendemos com Heráclito que a luz crua sempre é a melhor.
Minha resistência se justifica: constrangem-me essas liturgias mercadológicas. Não desgosto de autografar quando um leitor, ocasionalmente, sobretudo espontaneamente, vem ao meu encontro. Promoções para tal fim são outros quinhentos. A maioria das pessoas comparece porque, dir-se-ia, foi intimada. E se a fila é lumbrical, lá está a vítima, ou o réu, a cumprir a pena que a editora e o autor lhe dão: duas horas de espera. Isso sem falar no que desembolsou, nem sempre de boa hora.
O editor, não sei, mas suspeito de que ele poderia lamentar, como Schopenhauer sobre a vida, que sessão de autógrafos é um negócio que não vale o investimento. Tem um lado bom e um lado ruim. O bom: dá no jornal que a obra já freqüenta as prateleiras comerciais. O ruim: a casa gasta coxudos pilas na impressão de convites, gasta com envelopes, postagem, vinho, petiscos, sem contar as horas de trabalho de seus funcionários e a inquietude: será que vai dar certo? O investimento dificilmente é compensado pelo número de exemplares vendidos, exceto nos casos em que a fila dobra a esquina. E nem estou considerando que autografar livros em livrarias ou feiras é algo que se vulgarizou e perdeu o encanto. Em nossa feira, pasmem, tivemos 800 sessões de autógrafos, mais de 50 por dia.
Uma alternativa é o costume em voga no Uruguai. No lançamento do livro, o editor oferece um coquetel a jornalistas, críticos literários, livreiros, distribuidores. Alguém apresenta a obra, o autor responde às eventuais perguntas e... fim! Se algum dos presentes quiser um autógrafo, que o peça. Assim não se constrange o autor, tampouco o convidado, e o editor, gastando menos, herda o único benefício do que hoje se faz de modo tão incivil: a atenção de quem conduz o livro até o leitor.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Lançamentos de novembro


Três livros de Sergio Faraco foram lançados pela L&PM em novembro, na Livraria Saraiva e na 54ª Feira do Livro de Porto Alegre:


O pão e a esfinge seguido de Quintana e eu – edição inédita, com crônicas selecionadas de Sergio Faraco, publicadas, quinzenalmente, no jornal Zero Hora desde 2003 – seguido da correspondência, bilhetes e desenhos que o poeta Mário Quintana enviou ao escritor.
Noite de matar um homem – segunda edição, ampliada e ilustrada por Eduardo Oliveira. O livro traz uma reunião dos relatos de fronteira, publicados também em Hombre e Manilha de espadas, com larga repercussão na imprensa de todo país e exterior.
Doce paraíso – segunda edição, ampliada e ilustrada por Gilmar Fraga. Lançado em 1987, o livro igualmente teve ampla repercussão.
As duas sessões de autógrafos foram concorridas e o escritor recebeu amigos e leitores por mais de duas horas. Entre eles, Luis Fernando Veríssimo, que chegara de viagem ao exterior naquela manhã, Olívio Dutra e Alcy Cheuiche. (Nas fotos, Faraco com Luis Fernando Verissimo e Eduardo Degrazia).