segunda-feira, 20 de abril de 2009

O mentiroso

A partir de hoje, a coluna de Sergio Faraco passa a ser publicada nas segundas-feiras, quinzenalmente, no Segundo Caderno, de Zero Hora.
Em Alegrete havia um estancieiro cujo nome não direi, viúvo e sem filhos, dono de extensas sesmarias ricamente povoadas. Após o almoço, costumava sentar-se a uma mesa da copa no Clube Cassino para fumar um charuto e conversar. Mas ninguém – que pena –, ninguém gostava de conversar com ele, porque era um grande mentiroso.
Eu o conheci em meus 11 ou 12 anos.Ao sair do colégio, eu sempre ia ao clube jogar sinuca com os garçons – aproveitava a sesta do diretor de mês, que não me permitia jogar por ser menor. Um dia o estancieiro conversou comigo. Notando meu interesse, elegeu-me como seu primaz ouvinte.
Via-me guardar o taco e gritava:
– Vem cá, gringuinho.
E dê-lhe a encarreirar suas mentiras.
Uma delas era a da viagem a Nova York, num Constellation da Panair. Ele bebia um cálice de conhaque quando o avião entrou num vácuo e, segundo seus cálculos, perdeu légua e pico no altímetro. O cálice lhe escapou da mão e grudou de tal modo no teto que, ao fim do mergulho, parecia uma ventosa, e ele conseguiu recuperar o aperitivo sem que uma só gota fosse derramada.
Também contava que, num dia ventoso, ao camperear em seus domínios, ouviu Linda Batista a cantar um único e repetido verso: “Toda quimera se esfuma”. Outra lufada e o mesmo lamento: “Toda quimera se esfuma”. Vinha a voz de um capãozinho na quebrada entre duas coxilhas. Foi até lá, e que espantosa descoberta! Era um caco de disco que pendia de um espinilho. Ao roçar num espinho, produzia aquele queixume agoniado.
Estes e outros causos me encantavam, e deixar de ouvi-los foi talvez minha maior tristeza quando, ao completar 13 anos, meu pai me internou no Colégio Rosário em Porto Alegre. Como voltava a Alegrete só nas férias, perdi o contato com o mentiroso de minha predileção.
Suponho que, riscado o meu nome de seu caderno e sem vivalma para crer em suas inocentes quimeras, elas se esfumaram “como a brancura da espuma que se desmancha na areia”. Uma noite o vi sozinho num banco da praça, perto do mictório público. Aproximei-me para abraçá-lo e levei um susto: estava chorando. Antes que me visse, ai de mim, fugi, porque me deu vontade de chorar também.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

O pimentão olímpico

Coluna de Sergio Faraco, publicada hoje no Segundo Caderno, de Zero Hora
Dom Carlos – assim o chamava, embora ele não gostasse – era um homem circunspeto, de escassos sorrisos, ligeiramente desconfiado, ou antes ligeiramente cético, um efeito, quem sabe, da atribulada trajetória de sua existência. Ele se houve com um sem-número de percalços até que seus negócios afinal prosperassem, facultando-lhe a constituição de uma família saudável, laboriosa, e uma vida tão pacata que, em seus últimos anos, chegava a ser monástica. Morreu no ano passado, por certo compenetrado de que fez tudo o que tinha de fazer. Não é assim que morre a maioria das pessoas.
Esse Carlos, na verdade, chamava-se Karoly Cvitko, e nasceu em Csantavér, pequeno burgo ao sul da Hungria. Pouco depois da ignomínia que foi a invasão da Hungria por tropas soviéticas, em 1956, ele deixou o país com a mulher Erzabet e uma filha pequena, e veio morar no Brasil. Trabalhou como operário numa siderúrgica, e em seguida, por falar alemão e inglês, foi contratado como recepcionista do Plaza Hotel, em Porto Alegre. Trabalhou na mesma função em hotéis do Rio de Janeiro e de São Paulo. Por essas injunções do acaso, no segundo lustro dos anos 60 estabeleceu-se em São Sebastião do Caí. E ali, no km 9 da RS 122, Karoly e Erzabet fundaram um restaurante especializado em cozinha húngara, A Canga, que em 2009 completa 42 anos, administrado pelo filho Carlos José e pelo neto Carlos Felipe.
Mudou a administração, não a família e muito menos a receita do pimentão recheado com carne moída e arroz, ao molho de tomate com páprica doce, que continua tão irresistível como na primeira vez que o provei, em 1972.
Conheci o restaurante húngaro através do advogado Cláudio Battaglia e sua esposa Marlene, de cujo casamento fui padrinho, num dia que, por sinal, começou mal: levei uma carraspana de Dom Carlos. Minha mulher e eu estávamos com nossas filhas, de três e dois anos. Ao contemplar, inquieto, pimentões flutuantes em molho sanguíneo, perguntei ao proprietário se aquilo era apropriado para crianças. Dom Carlos enfureceu-se: “O que o senhor acha que as crianças comem na Hungria?”
As meninas comeram até fartar, e hoje, tantos anos depois, elas e o irmão menor continuam frequentando a casa e saboreando o mesmo prato. Diz Nelson Rodrigues que a gente só gosta do que comeu em pequeno. Pode ser, mas tenho outra teoria sobre o pimentão de São Sebastião do Caí: é o mesmo que, antes da sobremesa, Hebe e Ganimedes serviam aos deuses olímpicos. É por isso que se come e, à noite, sonha-se com ele.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

L&PM lançará, na Série Ouro, antologia de poemas selecionados por Faraco

Camões, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac, Fernando Pessoa, Basílio da Gama, Raimundo Correa, Bocage, Augusto dos Anjos, Florbela Espanca, Mario Quintana, Machado de Assis e muitos outros.
O escritor Sergio Faraco debruçou-se sobre os mais belos versos escritos por poetas brasileiros e portugueses e realizou uma seleção especial que agora é publicada em um único volume da Série Ouro: o Livro dos poemas. Esta coletânea rara e primorosa reúne cinco publicações anteriores pela Coleção L&PM Pocket e já esgotadas: Livro dos sonetos, Livro do corpo, Livro dos desaforos, Livro das cortesãs e Livro dos bichos. Todos foram sucesso; só o Livro do sonetos vendeu mais de 20.000 exemplares.
Na primeira parte do Livro dos poemas, autores de diversas gerações dão voz a sonetos de sensibilidade incomum. O que se segue são escritos que, agrupados em coletâneas temáticas, trazem as mais importantes composições poéticas sobre o fascínio pelo corpo feminino; uma compilação de poesia satírica que mostra a língua afiada dos escritores; um olhar exacerbado sobre as cortesãs que fizeram a loucura dos homens e textos que mostram o amor incondicional pelos bichos. Reunidos em um só volume, estes poemas são uma rica fonte de inspiração.