quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Antologia em Portugal

O conto "A sagração da noite escura", de Sergio Faraco, integra uma coletânea, recém lançada em Portugal, de contos portugueses e brasileiros cuja paisagem é um rio. Além de Faraco, participam outros seis autores gaúchos: Aldyr Garcia Schlee, Carlos Nejar, Flávio Moreira da Costa, Jane Tutikian, Moacyr Scliar e Monique Revillion.
A antologia foi organizada pelos portugueses Victor Oliveira Mateus e Celina Veiga de Oliveira e lançada pelo Editorial Tágide, de Oeiras (Lisboa).

sábado, 10 de outubro de 2009

Os Dez Mandamentos de Quiroga ainda geram debate

Matéria publicada no Jornal do Brasil de hoje.
Raimundo Carrero
RIO - Depois que Moisés desceu do Monte Sinai com os Dez Mandamentos nas tábuas e nas mãos, não faltou mais quem ditasse regras à vida e à arte. Horácio chegou a estabelecer as leis fixas – assim mesmo, fixas – para a poesia. Nem precisa lembrar Aristóteles que criou imensos conceitos sobre a arte de escrever, embora a história garanta que ele não escreveu nada, fez apenas breves anotações para um curso de teatro. O livro, porém – A poética – é amado, adorado, consultado. Todo bom – ou mau – escritor conhece-o. É leitura obrigatória. Sempre.
O escritor húngaro Stephen Vizinczey publicou também um decálogo severo – discutido no meu livro Os segredos da ficção, em que há pelo menos uma exortação determinante no sétimo artigo: “Não passarás um só dia sem ler algo grande”. E conclama o escritor a não ter empregos nem vícios, com uma vida inteiramente dedicada à narrativa. Cortázar reduziu seu “decálogo” a apenas dois artigos definitivos: 1) “O conto é uma espécie de luta de box que termina por nocaute no primeiro round”; 2) “O romance é uma luta longa que termina no último round por pontos”. Mário de Andrade ironizou: “Todo conto é aquilo que chamo de conto e crônica é tudo aquilo que chamo de crônica”. Para José Castello, que reclama liberdade absoluta do criador, sem amarras nem leis, mesmo subjetivas, “um escritor não se submete a regras. Por que descartar adjetivos e privilegiar os substantivos? Isso pode ser verdadeiro em um relato, mas pode ser inteiramente falso em outro”. Tem razão. Não existem leis absolutas na criação.
Agora o debate cresceu. Agigantou-se. Essa declaração de Castello, por exemplo, está no livro Decálogo do perfeito contista, organizado por Sergio Faraco e Vera Moreira para a L&PM. Mais adiante, Aldyr Garcia Schlee afirma que o decálogo de Horacio Quiroga tem uma rigidez cretina, ao contrário do deboche de Los trues del perfecto cuentista e da ironia de El manual del perfecto cuentista, também escritos pelo contista famoso. Nem por isso o Uruguai deixou de tomar um susto. Quiroga passou a ditar leis e a escrever manuais e decálogos para os ficcionistas, a partir da década de 20, no século passado. Regras objetivas para uma vida desregrada. Apesar de combatido e, em muitos casos, insultado – como ocorre ainda hoje em vários níveis, invejas e mentiras ocupam o mesmo corredor – o Decálogo do perfeito contista, passado quase um século, é examinado e debatido; riscado e guardado. Assim acontece com o volume agora publicado com um longo e saudável debate, reunindo 20 escritores brasileiros das mais diversas origens.
Quiroga, porém, não quer ser apenas exato e enxuto: quer ser perfeito. Talvez por isso mesmo não seja muito simpático aos comentadores. Quase todos lhe fazem ressalvas, embora a mim me pareça que os decálogos não são leis nem regras, são indicadores de caminho. Até porque, pela própria natureza da criação, o escritor inventa seu próprio decálogo no dia a dia. Por isso acredito numa só lei: escreva sempre, escreva todo dia, escreva agora. Se possível abandone todas as profissões e trabalhe, trabalhe, trabalhe. Osman Lins dizia que um ficcionista não deve ser sequer colunista literário para não perder tempo. Mas não é o que aconselha Jaime Prado Gouvêa: “Fé cega e ardor não costumam gerar coisas boas. E esse amor desbragado costuma acabar mal”. Mas escreva, sempre e muito. Publicação é outra coisa. E leia, leia muito. Prosador lê poesia; poeta lê prosa.
O terceiro artigo do Decálogo do perfeito contista, aquele que se refere à imitação, e que poderia ser o mais polêmico, chega a uma quase unanimidade. Uma quase unanimidade surpreendente. Imitar? Um escritor precisa imitar? Com cautela. O “nunca imite ninguém”, proclamado por Miguel Sanches Neto, tem uma resposta imediata de Cíntia Moscovich: “Como pode criar quem não imita?”. Moacyr Scliar, o mais objetivo dos comentadores, não descarta a ambiguidade queroguiana, a que chama de malandragem: “No terceiro conselho Quiroga desce do Sinai e chega ao território da malandragem. Não o faz sem uma advertência moral: 'Resiste quanto possível à imitação'. Depois, porém, cai na realidade: 'Imita se o impulso for muito forte'”.
É preciso não esquecer que Ismail Kadaré, o festejado autor de Abril despedaçado, afirma que o primeiro livro que escreveu foi Macbeth, de Shakespeare. Isto é, aos 9 anos de idade ele reescreveu todo o clássico à mão, para compreendê-lo melhor. Há os poetas que decoram poemas inteiros e não se livram deles. Os prosadores são diferentes: segundo o decálogo de Vizinczey, não sabem discutir sequer uma cena. Escrevem, escrevem bem, mas são perdoados “porque não sabem o que fazem”.
Aldyr prefere apostar no campo pessoal; nas informações dolorosas sobre a vida de Quiroga – e que vida, meu Deus! – revela que “o escritor tinha matado acidentalmente um amigo, tinha fracassado na tentativa de plantar algodão no Chaco, tinha posto fora uma herança e, voltando a Buenos Aires, conseguira com Leopoldo Lugones a nomeação para professor de castelhano e literatura na escola normal. Ele mesmo reconheceria mais tarde sua ignorância na arte de ministrar aulas”. Vai mais além: “Em 1937, Quiroga havia sido abandonado pelos filhos e pela segunda mulher, Maria Elena Bravo; amargava seríssimas dificuldades financeiras e, estando gravemente doente, interna-se num hospital e se mata, tomando cianureto”. Bem antes, muito bem antes, Aldyr informa que o escritor uruguaio viveu nas proximidades do Rio Paraná, em San Ignácio, acrescentando essa informação cruel: “Desde o rio soprava um vento frio. Até que sua mulher se suicidou. E ele teve de voltar a Buenos Aires com dois filhos pequenos”.
Está perdoado de todos os pecados.
Pecados que devem ser estranhos, estranhíssimos – como é da natureza de todo pecado – ao senhor José H. Dacanal, que publica artigos reunidos num livro pela editora Soles, também de Porto Alegre, com título provocativo: Oficinas literárias: fraude ou negócio sério?. Parece um homem polêmico, mas que parece atirar num endereço certo. Teria fuzilado Horácio Quiroga em plena praça da capital gaúcha. Não suportaria ler um único artigo. Não suportaria sequer a exposição do volume nas livrarias. Na verdade, ele enumera quatro tipos de oficinas – e cada uma parece se destinar a uma das leis de Quiroga – para qualificá-las ou desqualificá-las. E surge, então, a mais verdadeira ironia: ele pode qualificar o trabalho dos escritores, mas não admite que eles pensem. Ou falem. Ou estudem. As oficinas não prometem milagres: elas funcionam como auxiliar no trabalho da criação. É só isso. Não importa o método.
E vejam que Porto Alegre, de onde escreve Dacanal, é a capital das oficinas literárias. E boas. Boas, não, ótimas. É preciso acrescentar, todavia, que as oficinas não são laboratórios de feiticeiros, nem de bruxos, nem de alquimistas. São lugares onde a literatura é amada. Às vezes enfrenta amantes agressivos, do tipo Quiroga ou Dacanal. E, por isso mesmo, é ainda mais discutida. Mais examinada. Se submete a lindos strip-teases todas as noites. E cada dia acorda mais linda.